Outros corpos nossos is a long-term project (2019-2021) that chooses the book form to walk the libertarian paths drawn by the queer community in the city of Maputo. The project stems from the intuition to trace the queer city through the spaces it claims: places, events, nights. It is a collective project that combines in which the iconographic part (Aghi) meets the oral history research curated by Caio Simões de Araújo and the imaginative hues of the writing of Mozambican artist Mnapego Namoda.
The book includes texts by Caio Simões De Araújo, Nelson Munguambe, Francelino Zeute, Pamina Sebastião, Mnapego Namoda and Aghi.
"Here, this short concoction of words – Other, Bodies,Ours – incorporates these dimensions of queer experience: the overlapping of otherness and self, the corporeality of identities, and the urgent claim for belonging in a community.
With this in mind, the project Other Bodies of Ours follows a group of queer artists and activists as they carve out for themselves a space in the world, and in the city. The texts, photographs, portraits and testimonies comprise a living and lived archive of queer narratives in Maputo. As such, this book has been designed to blur the tenuous lines between public history and private biography. The photographs do not solely document an event; they are the product of the conversation between the photographer, the performers, and the public and private spaces they occupy. In presenting this work, the book hopes to interrogate the very means by which memories and archives are produced, silenced and reactivated in the midst of political struggles for LGBTIQ rights, visibility and recognition".
Caio Simões de Araújo
OUTROS CORPOS NOSSOS by Mnapego Namoda
E quando pela primeira vez eu beijei uma Mulher
senti que me beijava também
que me amava também
Naquele tempo eu ainda me entendia e identificava apenas como Mulher,
Hoje,
infinitas possibilidades
...
And when I first kissed a Woman
I felt that I was also kissing myself
that I also loved myself
At that time I still understood myself and identified myself only as a Woman
Today,
there are infinite possibilities
I.
Por todas as mentiras que aceitamos como verdades, eu imagino que o absurdo quando
acorda todas as manhãs na sua vasta cama cheia de flores,
mesmo antes de abrir os olhos, se ri das nossas caras
Como pudemos acreditar que, dos tantos e tantos zilhões de seres humanos que habitam
este planeta, existem apenas dois sexos biológicos, duas identidades de géneros e uma,
apenas uma identidade sexual?
Como pudemos acreditar que o amor se expressaria em apenas um formato?
For all the lies we accept as truths, I imagine the absurd feeling when you wake up
every morning in your vast bed full of flowers,
even before you open your eyes you laugh at our faces
How could we ever believe that of the many zillions of human beings that inhabit this
planet there are only two biological sexes, two gender identities and one, only one
sexual identity?
How could we ever believe that love is to be expressed in just one form?
II.
Na história da humanidade sempre houve corpos e identidades híbridas
corpAs
Em quase todos os continentes, as mais diversas culturas identificaram mais de dois
géneros e vivenciaram um terceiro (quarto, quinto...) corpo
O facto desses corpos não fazerem parte da nossa narrativa histórica
e do nosso consciente colectivo, tanto global como local,
deve(penso eu) atentar-nos para o problema “cultura africana”
ao falarmos da nossa identidade precisamos ter em conta que
a percepção sobre quem somos é, igualmente, uma denúncia
ao genocídio cultural à que ainda estamos submissos na colonialidade
O que hoje pensamos sobre nós é
um corpo híbrido
entre o que somos
o colono disse-nos que somos
o que rejeitamos desses discursos e também o que aceitamos deles
O que hoje pensamos sobre nós é
um emaranhado
dos efeitos do tempo e suas transformações político-sociais
profundamente assentes na sua carne de supremacia branca, Cis-masculina, Ocidental
e seus dentes capitalistas predatórios
O que hoje pensamos sobre nós é
é um choro que não tem lugar para chorar
Um corpo que perdeu o seu terceiro braço, precisa continuar e se pensa completo
In the history of mankind there have always been hybrid bodies and identities
On almost all continents the most diverse cultures have identified more than two genders
and experienced a third (fourth, fifth...) body
The fact that these bodies are not part of our historical narrative
and our collective consciousness both globally and locally
should, I think, call our attention to the problem of “African culture”
When talking about our identity we need to take into account that
the perception of who we are is also a denunciation of the cultural genocide to which we are still
of the cultural genocide to which we are still
What we today think of ourselves is
a hybrid body
between what we are
what the settler told us we are
what we reject from these discourses and also what we accept from them
What we today think of ourselves is
an entanglement
of the effects of time and its political-social transformations
deeply rooted in this white supremacist, Cis-male, Western flesh
and their predatory capitalist teeth
What we today think of ourselves is
it’s a cry that has no place to cry
a body that has lost its third arm, but needs to continue and is thought of as complete
III.
Encontros com o Ifá
desenterrando corpos
tacteando caminhos
O Ifá é um sistema tradicional de prácticas espirituais, oriundo do povo Yorùbá na actual
Nigéria
Uma forma de vida que busca uma relação harmónica com o todo
Através da observação da Natureza e do culto aos ancestrais
No Ifá
as forças da Natureza são representadas por diversas entidades espirituais
chamadas de Orixás
Através da observação da Natureza e do culto aos ancestrais
A medida que durmo com os Orixás
percebo que suas representaçōes ultrapassam as noções de género, sexualidade e afecto
que a moderna binaridade simples nos impõe
Percebo que a partir dessas representações podemos talvez,
aprender e expandir a nossa compreensão
O ponto de partida no Ifá é
o entendimento do masculino e feminino como energias
como qualidades inerentes a toda e qualquer vida
a todo corpo
seja este humano, animal ou vegetal
independente da identidade de género ou orientação sexual
Que pode, portanto, se assumir múltipla, fluida, plural...
Assim são (é) Oxumaré o Orixá que representa o género fluido
Orixá serpente que governa as transformações, os ciclos
a fluidez e as transições de todos os tipos
De tal modo que até a sua noção moderna condensada no termo LGBTQIP+
me parece se tornar redutora
Oxumaré nos lembra que
as identidades híbridas, múltiplas, fluídas e transitórias
são parte da Natureza e, portanto, são sagradas
Oxumaré nos lembra que
Mãe-Pai Deus vive fora do binário!
Oxumaré nos presenteia, com a cura e o poder da serpente
Oxumaré representa a natureza cíclica, a transformação
Oxumaré é o Orixá que reafirma:
Sim, debaixo da saia do tio Joaquim tem uma vagina
as identidades híbridas, múltiplas, fluídas e transitórias
são parte da Natureza e, portanto, são sagradas
Oxumaré nos lembra que
Mãe-Pai Deus vive fora do binário!
Oxumaré nos presenteia, com a cura e o poder da serpente
Oxumaré representa a natureza cíclica, a transformação
Oxumaré é o Orixá que reafirma:
Sim, debaixo da saia do tio Joaquim tem uma vagina
Entender a complexidade de que Oxumaré - e outros Orixás - nos apresentam, me ajuda a
abrir espaço para compreender as múltiplas configurações de género, sexualidade e afecto
que se constituíram pelo continente antes da colonização
No Uganda, o povo Ankole, elegia uma mulher para se vestir de homem e assim se tornar um oráculo do deus Mukasa; No Reino do Daomé no actual Benin havia um regimento feminino de guerreiras chamado mino (nossas mães). Elas eram mulheres solteiras e sem filhos, consideradas como tendo traços masculinos ou agressivos; Em Bangala, na actual República Democrática do Congo, as crenças animistas eram sustentadas por xamãs que se vestiam com roupas de mulher para ganhar a habilidade de solucionar crimes como assassinato; No Quênia e na Tanzânia, Mashoga é um termo suaíli que conota uma variedade de identidades no continuum de género, embora vagamente usado para indicar homens gays, uma grande proporção de mashoga são homens biológicos que muito cedo adoptam o género feminino e desempenham um papel crucial nas cerimónias de casamento (1)....
Encounters with Ifá
unearthing bodies
groping paths
Ifá is a traditional system of spiritual practices originating from the Yorùbá people
of present-day Nigeria
A way of life that seeks a harmonious relationship with the whole
Through the observation of Nature and the cult of the ancestors
In Ifá
the forces of nature are represented by several spiritual entities .
called Orixás
As I sleep with the Orixás
I realize that their representations go beyond the notions of gender, sexuality and affect
that modern simple binarisms impose on us
I realize that from these representations we can perhaps,
learn and expand our own understanding
The starting point of Ifá is
the understanding of the masculine and the feminine as energies
as qualities inherent to each and every life
in every body
whether it is human, animal or plant
regardless of gender identity or sexual orientation
Which can therefore be assumed to be multiple, fluid, plural...
So Oxumaré are (is) the Orixá that represents gender fluidity
A serpent-Orixá who governs transformations, cycles
fluidity and transitions of all kinds
In such a way that even its modern condensation in the term LGBTQIP+
seems to me to become reductive
Oxumaré are women/femme for half of the year
and male/male in the other half
Oxumaré reminds us that
hybrid, multiple, fluid and transitory identities
are part of nature and therefore are sacred
Oxumaré reminds us that
Mother-Father God lives out of the binary!
Oxumaré presents us with the healing power of the snake
Oxumaré represents the cyclical nature of transformation
Oxumaré is the Orixá who affirms:
Yes, under Uncle Joaquim’s skirt there is a vagina
Understanding the complexity that Oxumaré – and other Orixás – put before us, helps me
to open up a space to understand the multiple configurations of gender, sexuality and affect
that were in place on this continent before colonisation
In Uganda, the Ankole people chose a woman to dress as a man and thus become an oracle of the god Mukasa; In the Kingdom of Dahomey in present-day Benin there was a female regiment of female warriors called mino (our mothers). They were single and childless women, considered to have masculine or aggressive traits; In Bangala, in the present-day Democratic Republic of Congo, animistic beliefs were supported by shamans who dressed in women’s clothing to gain the ability to solve crimes such as murder; In Kenya and Tanzania, mashoga is a Swahili term that connotes a variety of identities on the gender continuum. Although loosely used to indicate gay men, a large proportion of mashoga are biologicalmen who very early adopt the female gender and play a crucial role in wedding ceremonies (1)....
IV.
E, caso considere que todas essas Áfricas são ainda distantes da nossa, lembro,
as fronteiras que conhecemos hoje são uma construção colonial
Enquanto povo Bantu, a nossa identidade ancestral tem origem cultural e linguística na
região dos Grandes Lagos, entre o antigo reino de Benin - actual Nigéria - e os Camarões
Origem esta que partilhamos com centenas de povos/países desde a região Ocidental
Central até ao Sul do continente
Esses corpos outros são nossos também
And if you think that all these Africas are far from ours, I remind you,
the borders we know today are colonial constructions
As a Bantu people, our ancestral identity has a cultural and linguistic origin in the Great Lakes
region, between the ancient kingdom of Benin – present-day Nigeria – and Cameroon
We share these origins with hundreds of peoples/countries from the Western
Central and Southern regions of our continent
These other bodies are ours too
V.
Entretanto, há que sublinhar
não estou aqui para pregar em nome de nada
Isto não é sobre Direitos Humanos
- - graças às Deusas -
- nem mesmo é em nome de um resgate dessa tal identidade africana
A questão aqui é muito mais simples
creio
É que não pode ser tolerável que
Enquanto pessoas adultas tenhamos de viver em permanente reivindicação
pelo direito à viver no próprio corpo
Tem sido doloroso observar que
de tudo o que há de mais potente
de tudo que desafia o projecto da modernidade colonial
Vive em permanente ameaça de morte
Os/As Mashona
As identidades Trans e Travestis As Mulheres
Os saberes ancestrais
Os Mares
A Mãe Natureza
Existências que transbordam fronteiras
Que borram, que sujam e ultrapassam
Corpos fundos demais para serem uma coisa só
Por tudo isso, à mim, diante das fotografias de Aghi
e de tudo que esses “ outros corpos nossos” me sugerem
cabe-me usar desta oportunidade para provocar
Para acordar
qualquer coisa
- - em nós -
- Um pensar, um sentir
Qualquer coisa
que exista para além
de tudo isso
Além da cultura e de tudo mais
Formas de se ser livre que ainda não tenham nome
ou que seus nomes se tenham perdido nas dobras do tempo
However, it is necessary to underline
I’m not here to preach in the name of anything
This is not about Human Rights
- - thanks to the Goddesses -
- This is not even about rescuing an African identity
The question here is much simpler
I believed
It is not acceptable that
We as adults have to keep on living in constant rivendication of the right to live in our own body
It has been painful to observe that
of that is most powerful
all the thing that challenge the project of colonial modernity
Live in the permanent threath of death
The Mashona
Trans and Travesti identities
Women
Ancestral knowledges
The Oceans
Mother Nature
Beings that spill over borders
Que That smudge, mess up and surpass
Bodies too deep to be one thing only
PFor all this, in face fo Aghi's photographs
of everything that these "other bodies of ours" suggests to me
it is up to me to take this opportunity to provoke
To wake up
something
- - in us --
- A thought, a feeling
Anything
that exists beyond
all of this
Besides cultures and everything else
Ways of being free that are yet to be named
whose names have been lost in the folds of time
VI.
Sobre esses outros corpos nossos
Cabe-me usar deste encontro para acima de tudo e sobre tudo celebrar
celebrar, as fluidas configurações e formas
em que (re) existimos e podemos existir
Sentir
Expressar e vivenciar
as infinitas formas de ser e amar!
VII.
Axé!
On these other bodies of ours
I want to use this encounter above all and especially
celebrate, the fluid configurations and forms
by which we (re) exist and in which we can existTo feel
To feel express and experience
express and experience
Axé!
Internazionale (ITA) feb. 2022